ou O Terrível Encontro Com O Demônio No Jardim Selvagem.
Passou a manhã e a tarde a ler em um colchão mijado no escritório. Nada mal. Nem se preocupou em espiar a luz do sol, os dias por aqui são todos iguais, nem um relampejo de reconhecimento ao se deparar com os ideais antigos soma ao cotidiano qualquer experiência nova.
Por volta das 18hs, no entanto, começou a ficar inquieta, até que o casaco começou a lhe pinicar, - ok ok tá bom, farei algo para distrair um pouco o cérebro/estômago - . Lembrou-se do jardim, sua aparência decrépita, suas cores pastéis, e quando abriu as cortinas, lá estava: se a morte há de arrastar-lhe para algum lugar que valha após o golpe final, é para esse palco infernal que lhe traz.
Cenário patético, pensou, ao observar o jardim mal podado. Folhas secas por toda parte, frutas podres mofando no chão. Adora decadência - o imenso desespero, a morte que ronda, o mundo à beira do abismo, aquela sensação de quase-vida - , mas seus pensamentos têm nadado lentos, e esses últimos dias, talvez milênios, trouxeram-lhe a velhice e a velhice trouxe-lhe nada. Ainda mais, nada dói e nada mata, nem o amor mata, ora... mas que vida estuprada de merda. Nesse prescrustar lembrou-se da avó, então, decidida, caminhou até o jardim e ligou a mangueira. Atravessou os templos do jardim, e lhe pareceu imenso de repente, como o fora quando era criança; anos onde tudo lhe parecia imenso e incompreensível. Pensou como era revigorante perceber que agora que possuia o mundo ao alcance das mãos, não o desejava. Há momentos como estes, esta perda de tempo de tentar salvar alguns abacateiros e um punhado de gramado ressecado.
A tarde flechou-se nisso. Deu passos trôpegos do aqui para o ali, cantou o que se prometeu não mais cantar, cansou, cansou, volta e meia a mangueira esguichou-lhe a cara. Sentiu-se infantil.
Passo a passo, o espaço inteiro, o universo inteiro tornou-se mais como um abominável esforço, mas como por ora era valente, forçou-se a ir em frente. Garota, quem sabe tenha finalmente se tornado um mártir ou Sísifo como outrora sonhou. Ah, pedra nossa de cada dia.
Por uns instantes, prostrou-se ao lado de uma pitangueira a fim de ruminar vagamente os últimos meses com suas decisões e arrependimentos inconcretos, até avistar:
De início, pensou estar adormecido ou ferido, mas quando subiu-lhe a coragem de esguichar um de seus membros e o viu desprender-se lentamente do corpo como uma pasta gosmenta, decidiu: morto. Não sabia ao certo o que era. Deitado naquela posição de desamparo, poderia ser qualquer coisa, qualquer um, seus pequenos olhos covardes espelhavam o vazio. Desmembrado, tronco inchado, fétido, caindo aos pedaços, como um frango apodrecendo na pia da cozinha, como um gambá do mato esquecido. Sim, exato, um gambá do mato.
Agachou-se ao seu lado um pouco hesitante, pois a morte sempre lhe pareceu um pouco improvável, algo como uma piadinha do destido para lhe fazer mais prudente, ou ao menos, para lhe forçar a cruzar a rua só depois de olhar para os dois lados; para a vida doer menos. Ponderou sobre a imagem à sua frente conseguir dar-lhe um enredo, tentou imaginar o que uma garota como ela deveria sentir ao se deparar com um saruê morto e podre em seu jardim, ah, já faz anos que tem que se ensinar a sentir e a reagir nos momentos certos, pois mesmo um pouco trabalhoso, sabe o quão trabalhoso é ser tachada de maluca.
Agachada estava, participando estava e reagir demonstrou-se um esforço enorme, seria melhor talvez levantar ainda que com dificuldade, dar alguns passos para trás (confusa e distraída), virar-se, deixar a mangueira ligada ensopando a grama seca e um chinelo no meio do caminho na volta à casa.
Loucura não era, mas precisava pensar, quem sabe beber um pouco de leite, acender um cigarro, lembrar-se de seus mortos queridos, encher os olhos d'água ao pensar como as flores haviam se tornado escassas, do mesmo modo que suas vozes morreram na memória.
Acha difícil afogar-se hoje com o tanto de amor que tem recebido.
Uma culpa bruta invade-lhe o peito, os pensamentos voam... pois é, garota, foi-se o tempo em que pôde desistir de estar e ser em algum gramado da vida.