Wednesday, 7 July 2010

Ressaca da maré

Meu avô foi marinheiro. É sério, cruzou a costa do Brasil da cabeça aos pés, é possível que tenha uma família diferente em cada porto que parou e, certamente, ouviu e se comunicou em mais dialetos do que muito doutor em linguística. Conto isso, porque uma das imagens mais nítidas que tive de marinheiros na infância não foi a dos navios, das velas, dos containers ou de homens tatuados, curtidos do sol, cuspindo e bebendo, mas sim, de suas esposas. Ah, você sabe, já deve ter visto em histórias antigas, em livros do Jorge Amado, talvez em alguma pintura ou desenho animado: um final de tarde no porto, o horizonte engolindo um dantesco sol alaranjadado e uma moça prostrada no cais ou na beira de algum promontório, cabelos soltos ao vento, lágrimas nos olhos, uma preçe nos lábios e um lenço úmido apertado nas mãos, esperando esse alguém que lhe prometeu o mundo e se jogou no mar.
Imagino se minha avó foi uma delas, nem que tenha sido uma versão mais recatada delas. Quem sabe sentiu-se reprimida pelo escarcéu da gaivota e foi para casa degustar a própria dor e esbarrando as mãos nas cabeças das esculturas de santos que mantinha em cada canto da casa, arrastando as chinelas pelo corredor escuro, acabou na cozinha gemendo baixinho em frente ao fogão à lenha e pôs-se a fazer a janta para um prato só. Seja como for, não serei uma delas, não lhe esperarei no porto que guardo em mim, não espere oferendas à Iemanjá, velas em frente à estátua de São Nicolau, tampouco oferecerei noites em claro, um sorriso doído no canto da boca ou olhos opacos de tanto chorar.
Mas é claro que cuidarei de suas feridas, até as cicatrizadas, até as incuráveis, serei como uma enfermeira cega e minhas mãos como água quente a deslizar sobre seu corpo febril, serei muito bela, ágil e gentil, sorrirei lentamente para você nos dias em que chegar cambaleante, soluçante, tonteante, o chamarei de querido com um beijo, ouvirei suas lástimas sobre a falta de sentido do dia após dia após dia após século no mar. Somente não se esqueça, posso até querer menos ausência, incoerência, imensidão azul a me perturbar, mas por mais que eu queira um pouco mais, nada peço, nunca mais.

You run, rabbit, run....

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