Lixo pela casa e eu penso, ah, que mal há de fazer, algumas moscas, será?, focinho de cachorro se entretendo com os restos abandonados, você resurge inesperado, porque sempre volta quando acendo uma vela, às vezes duas. Evito o eu como quem evita aquele sentimento de identidade, de compor um quadro explícito, organizado e compreensível. E você diz para si, os dias fecharam-me as portas, digo que há sempre uma janela, mesmo no último andar há saída, mesmo nos dias de sol, sei que entenderá. Prometo em confissões confessáveis: escreverei quando tiver tempo. Tempo de espírito. E não atravessarei mais as ruínas desse dia podre, dessa cidade morta vaga indiferente. Não é nada disso que gostaria de relatar, tinha outra coisa em mente, mas aqui está. Irei me redimir eventualmente, quando parar de ler, talvez de beber, lembrarei das ideias, das palavras, de seu rosto tão marcado, tão animado, serei sã. Sonhará comigo. Serei sã.
Decido que deve haver algo em mim, já que não morri, nem a hepatite me consumiu, ainda leio livros, não consigo resistir, devo estar viva, uma angústia, uma chegada nunca partida, ainda tento aprender Khmer, francês, japonês, italiano, olho-me no espelho e não choro, escrevo sobre o mesmo banal de antes, recuso-me a divagar sobre o mendigo e sua garrafa de conhaque brasileiro deitados no meio-fio, uma linha marrom escorrendo até o boeiro, a ferida no joelho enlameado do menino com a mão enfiada pra dentro da janela do carro... dando sinal de vida, anunciando sua existência, seu retorno maravilhoso, o tapete sujo de merda, as cãimbas do cão, devo dar-lhe uma banana? Bebi demais e as obrigações acumulam-se. Compra-se comida quando se tem fome, não é? Lava-se a calça quando há mancha de whisky, pega-se o ônibus certo na hora exata e vive-se completa, não é mesmo? Ou melhor, vive-se repleta.
Repleta até a goela.
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